Como o 'Ori Tahiti' e a Cultura Taitiana Sobreviveram à Colonização e ao Silenciamento
Imagine viver em um paraíso natural, onde a dança, a música, a espiritualidade e a língua fazem parte do seu cotidiano. Um lugar onde a conexão com a natureza e com os ancestrais guia os rituais, celebrações e a forma de viver. Agora imagine que, de repente, estrangeiros chegam com promessas de salvação - mas, no fundo, trazem o apagamento da sua fé, da sua cultura, do seu próprio idioma.
Essa foi a realidade do povo do Taiti no século XIX.
Quando a fé europeia se impôs como lei, tudo mudou. Os templos foram destruídos. As danças proibidas. O idioma foi silenciado. E a cultura taitiana, tão rica e viva, quase foi apagada da história. Mas não foi.
Esta é uma história de repressão, mas também de resistência profunda e resiliência cultural. Confira:
Com a chegada dos missionários europeus (especialmente ingleses da London Missionary Society, em 1797) teve início um processo de evangelização forçada. Portando Bíblia e promessas de "civilização", eles implantaram uma nova lógica de poder, moral e repressão.
Para os missionários, as danças taitianas eram consideradas lascivas, vulgares e ofendiam os princípios cristãos. A espiritualidade local era vista como demoníaca e todos os seus elementos foram rapidamente condenados. O rei Pōmares I, pressionado pelos colonizadores e vendo no cristianismo uma estratégia para preservar sua liderança política, se converteu à nova fé. A partir disso, a religião ancestral taitiana passou a ser perseguida.
Logo, os marae (templos sagrados) foram destruídos ou abandonados, os rituais e oferendas proibidos, e o conhecimento ancestral passou a ser reprimido.
Código Pōmare: a lei do silenciamento (1819)
Em 1819, o chamado Código Pōmare foi decretado. Essa legislação criminalizava diversas práticas tradicionais, como:
- Danças e cantos cerimoniais;
- Tatuagens (tatau);
- Uso de adornos corporais considerados "indecentes";
- Participação em rituais espirituais tradicionais.
Supressão do idioma taitiano
Além das práticas culturais, o idioma reo Tahiti também sofreu repressão. As escolas missionárias ensinavam exclusivamente em inglês e francês, e o uso da língua nativa era desencorajado, visto como um obstáculo à "civilização" e à fé cristã.
A língua taitiana, repleta de oralidade, poesia e espiritualidade, começou a desaparecer do cotidiano formal — especialmente nas cidades. Foi um duro golpe, pois a tradição polinésia se transmite, sobretudo, pela palavra falada.
Mesmo assim, nas vilas e famílias, o povo seguiu falando, ensinando e resistindo com sua voz ancestral.
Repressão brutal: prisões, castigos e multas
Quem descumprisse as proibições era punido com severidade. As penas incluíam:
- Prisão;
- Açoites e punições corporais públicas;
- Multas em bens e alimentos;
- Humilhação e perseguição social.
Epidemias e colapso populacional
Paralelamente à repressão cultural, o Taiti enfrentou uma catástrofe demográfica. Doenças trazidas pelos europeus — como varíola, sarampo, tuberculose e gripe — se espalharam rapidamente entre os taitianos, que não tinham imunidade. Estima-se que mais de 80% da população foi dizimada entre os séculos XVIII e XIX.
Resistência silenciosa
Mesmo diante da dor e da violência, o povo taitiano resistiu. Em segredo, mantiveram vivos os saberes, as danças, os ritmos e a espiritualidade.
- Mulheres ensinavam os passos do 'ori tahiti dentro de casa;
- Os cantos cerimoniais eram sussurrados para as novas gerações;
- As tatuagens continuavam sendo feitas clandestinamente.
O renascimento: Tiurai e o retorno do orgulho cultural
A instalação do Protetorado Francês em 1842 e, posteriormente, a anexação oficial em 1880, abriram caminhos para a revalorização da cultura local. Em 1881, foi criado o festival Tiurai (hoje Heiva), com o objetivo de comemorar o Dia da Bastilha na colônia, mas que acabou se tornando um dos maiores símbolos do renascimento cultural do Taiti.
Ainda que inicialmente folclorizadas e desprovidas de significado espiritual, as danças voltaram a ser apresentadas em público.
Liberação oficial e nova era (1950–1980)
- 1959: a França libera oficialmente as manifestações culturais taitianas;
- 1985: o festival muda de nome para Heiva i Tahiti;
- O 'ori tahiti' passa a ser celebrado com orgulho, como expressão de identidade polinésia.
Hoje: dançar é resistir
Dá pra dizer que dançar hoje é um ato político e espiritual. Cada movimento no 'ori tahiti' é uma lembrança de que, mesmo diante de tanta tentativa de apagamento, a cultura taitiana não se curvou. Ela resistiu.